(Coisas velhas merecem trilhas aconchegantes - Marcelo Jeneci - Ritos)
Você tinha cheiro de incenso e coisas velhas. Irritava o meu nariz alérgico, às vezes, mas era aconchegante como cobertor antigo de estampa xadrez. E era assim, um incômodo confortável, de fácil resolução. Sempre foi tudo tão fácil com você. A vida se fundia entre surpresas e nostalgias, tal qual tardes em que se tira coisas de um baú antigo, que são atravessadas por risos e saudosismo.
O que você deixou, já não é mais. Diluí ao longo dos dias, de acordo com a previsão do tempo. Esperei os ventos bons para levar cada fragmento seu para os lugares que nos desejei. Deve ter você em Bali, Marajó, Patagônia e até no Monte Roraima. Aqui só ficou o seu cheiro de incenso e coisas velhas. Velhas como as páginas amareladas em comum no livro das nossas vidas. Releio ocasionalmente quando os dias estão filtrados em sépia. A nossa prosa parecia um romance completo, mas era só o ensaio de uma crônica. Apesar disso podemos nos considerar escritores esforçados. Existem passagens bonitas, embora efêmeras. Ainda assim, você pode visitar vez em quando. Faz bem passear entre reminiscências doces, velhas conhecidas. Já não lembro mais da sensação térmica da sua pele, mas o cheiro...
Porque cheiro de incensos baratos são tão fortes e chegam tão longe? Desculpa se soou ofensivo comparar seu cheiro a incensos baratos, mas incensos baratos não são ruins. Na verdade são verdadeiramente únicos. Sentimos e logo sabemos que se trata de um incenso barato. E no fim das contas, nosso encontro não passou disso - de uma fagulha de incenso que se acendeu, todo mundo notou e se foi - porque foi feito tão somente para isso: acabar. Mas o cheiro... O cheiro impregna. O cheiro gruda nas paredes da memória. Talvez eu também tenha um pouco desse cheiro. Daquela marca que todo ser humano significativo tatua na alma de outro ser humano que se deixa ser marcado.
Espero que fique bem na minha caixa de coisas velhas. O mundo está deveras diferente, a vida mudou. Entretanto, como uma boa velha saudosista que sou, voltarei para tirar a poeira e farei companhia em um possível texto sobre passados. Só não acostume porque não me demoro. Preciso abrir caixas para os meus novos presentes (e ir correndo tomar um remédio para essa coceirinha no nariz!).